Skip to main content

Por que precisamos de uma política de cidades?

Considerando que:

  1. As cidades são importantes desde logo porque concentram uma percentagem crescente da população do país. Os residentes em áreas classificadas pelo INE como predominantemente urbanas (freguesias urbanas, suburbanas e das sedes de concelho com mais de 5000 habitantes) totalizam perto de 75% da população. Os residentes em lugares classificados como cidades correspondem a cerca de 43%. Independentemente do critério estatístico utilizado, o peso relativo da população urbana tem vindo sistematicamente a aumentar, estando, ainda assim, aquém dos valores verificados em muitos países europeus, o que deixa antever que esse aumento tenderá a prosseguir nos próximos anos.

  2. As cidades, ainda que correspondam a realidades bastante distintas, são igualmente importantes por concentrarem problemas e oportunidades com impactos que ultrapassam em muito os espaços que ocupam. Por exemplo, o seu contributo relativo para a emissão de gases com efeito de estufa ou para o consumo de recursos finitos do planeta é bastante superior ao seu peso demográfico, afetando tanto áreas próximas como distantes. Ao mesmo tempo, as cidades são reconhecidas como parte relevante da solução para as alterações climáticas, já que a concentração potencia menor consumo de água e de energia, menor ocupação do solo, infraestruturas mais eficientes e uma mobilidade mais sustentável. Da mesma forma, as oportunidades que as cidades proporcionam em termos de educação, cultura, acesso a serviços especializados, inovação, etc., têm efeitos positivos que ultrapassam em muito a sua delimitação.

  3. As cidades são espaços económicos onde se geram modelos que definem condições de produção, relações de trabalho e emprego que configuram a constituição económica e social do urbano e das sociedades em geral.

  4. As cidades são espaços privilegiados de encontro, partilha e relação entre pessoas, grupos e comunidades com características muito diversas, proporcionando dinâmicas de interação, inovação e vitalidade social e cultural que dificilmente estão presentes noutros tipos de territórios.

  5. As cidades caracterizam-se por uma complexidade interna elevada e marcada por situações de forte assimetria social, diversidade étnico-cultural e fragmentação socio-urbanística, com expressão em condições de acesso desiguais em domínios fundamentais da vida urbana como habitação, transportes públicos, equipamentos básicos de educação, saúde e cultura ou espaços verdes de qualidade.

  6. As cidades são palcos permanentes de disputas em torno da propriedade, dos usos e ocupações do solo e dos modos de produzir cidade, que envolvem atores e interesses com poder e capacidade de influência, decisão e ação muito diversos.

Seria de esperar que a necessidade de existir uma política de cidades, tanto ao nível nacional como para cada uma delas, tivesse um reconhecimento político e social generalizado.

Sucede, contudo, que:

  1. O Estado tem sido omisso no que se refere à necessidade de uma política de cidades. Mesmo as autarquias, por opção ou por escassez de recursos ou massa crítica, raramente tomam a iniciativa de desencadear processos colaborativos e participados de construção de uma visão de cidade e respetiva estratégia de concretização, limitando-se, na maior parte dos casos, a elaborar instrumentos setoriais ou temáticos e a desenvolver ações de gestão urbana.

  2. Nos últimos anos, os debates sobre o futuro das cidades têm sido polarizados por agendas temáticas (cidades sustentáveis, saudáveis, inteligentes, circulares, etc.), modelos de cidade (cidade compacta, dos 15 minutos, etc.), populações-alvo específicas (cidades amigas das crianças, das pessoas idosas, dos animais de companhia, etc.) ou tipos de cidades (cidades médias, áreas metropolitanas). Estas perspetivas têm a vantagem de definir focos específicos de ação, estabelecer prioridades de intervenção e identificar os nexos de causalidade mais relevantes em função de objetivos concretos, mas não garantem uma visão suficientemente abrangente das cidades enquanto totalidades simultaneamente socioecológicas, económicas, institucionais e políticas.

  3. Ao mesmo tempo, as cidades nem sempre são pensadas, planeadas e geridas em função das relações de conetividade, complementaridade e integração que devem estabelecer com as áreas envolventes nos mais diversos domínios, desde as questões ecológicas e alimentares à mobilidade ou às atividades económicas e culturais.

Assim:

  1. Pela sua relevância, impacto, diversidade, complexidade e conflitualidade potencial e real, as cidades:
    (i) exigem uma compreensão holística a partir de um conceito agregador (p. ex., o direito à cidade);
    (ii) implicam a produção de visões e estratégias de futuro, considerando as cidades em si e nas múltiplas relações que se estabelecem no seu interior e com outros espaços, próximos e mais ou menos distantes; e
    (iii) pressupõem a existência de uma política de cidades que seja coerente com as diversas políticas setoriais e contribua para a articulação entre todas e para o sucesso de cada uma.


Visão holística

  1. A gravidade com que vários problemas sociais, ambientais, económicos e políticos emergem nas cidades apela à necessidade e urgência de projetos comuns e soluções que mobilizem o seu potencial transformador em torno de valores humanos, como equidade, coesão social, sustentabilidade ou saúde pública, e da consciência de que as cidades constituem não só uma casa comum como a principal fonte geradora de cidadania, coletivismo e democracia.


Visão de Futuro

  1. As cidades têm vindo a ser consideradas palcos fundamentais para o sucesso de várias transições desejadas: demográfica, climática, energética, digital, etc. Esta perspetiva é útil, mas insuficiente se essas transições não forem encaradas como dimensões de mudanças mais profundas, de natureza estrutural, em prol da qualidade da vida coletiva e do planeta.

  2. A construção de imaginários urbanos relativos às cidades que desejamos constitui um exercício fundamental de mobilização e consciencialização dos que habitualmente não têm voz na sua construção e facilita a compreensão, por parte dos cidadãos, do impacto das políticas urbanas na sua qualidade de vida. Acresce que a produção de referenciais visuais de fácil compreensão facilita a identificação e gestão de tensões, dissensos e conflitos entre quem pensa e faz cidade a partir de valores, interesses e preferências diferentes e mesmo antagónicos.


Política de Cidades

  1. Não há cidades decentes sem política de cidades. Mas a política de cidades deve ser pensada a montante, isto é, baseada em visões integradas e estratégias enquadradoras de políticas setoriais, funcionando como uma metapolítica na qual se devem ancorar políticas de natureza mais específica, e não a jusante, ou seja, com o objetivo meramente instrumental, e muitas vezes inglório, de tentar articular políticas setoriais dos mais diversos domínios (transportes, habitação, turismo, competitividade económica, etc.) ou mitigar os impactos territoriais negativos dessas políticas.

  2. A política de cidades, que pode ser de âmbito nacional, regional, intermunicipal ou local, garante duas finalidades essenciais e específicas. A primeira finalidade é assegurar uma visão integrada de diferentes setores, territórios (urbanos e não urbanos), instrumentos de política e escalas de ação, contribuindo para ganhos de coerência, complementaridade e sinergia, ao mesmo tempo que se procura prevenir e combater os efeitos contraditórios de políticas que prosseguem objetivos distintos. A segunda finalidade é garantir níveis socialmente exigíveis de coesão territorial com base numa visão estratégica de consolidação de (sub)sistemas urbanos enquanto ossatura indispensável à existência de territórios mais equilibrados porque mais policêntricos.

  3. Esta visão multidimensional e multiescalar de política de cidades implica revalorizar as funções do planeamento e ordenamento do território por parte da administração central e local. Mas implica também, e simultaneamente, uma participação efetiva e proativa dos cidadãos no sentido etimológico desta palavra, isto é, o exercício dos direitos e obrigações que estes têm no que diz respeito ao cuidar da cidade (civitas) como bem comum, neste caso, através do seu envolvimento em processos de deliberação essenciais à construção de uma cidade de todos/todas – da rua ao conjunto da cidade e, mesmo, a territórios mais abrangentes, como no caso da localização ou traçado de grandes infraestruturas de transporte ou, num domínio muito distinto, do planeamento de sistemas alimentares urbanos e metropolitanos.


Em síntese:

  1. É nas cidades, ou a partir delas, que se ganha ou perde a batalha pelo interesse público, pelos bens comuns, pela qualidade de vida, pela equidade e pela democracia. Para o bom desfecho dessa batalha, é imprescindível contar com uma visão e um enquadramento estratégicos, de natureza multidimensional e multiescalar, que permitam transformar as cidades em comunidades onde é possível sonhar, ambicionar e ter esperança em futuros desejados, e não apenas acomodar-se ou tentar resistir a futuros indesejáveis mas impostos.

  2. Precisamos, portanto, de política de cidades porque, primeiro, as cidades são decisivas para o futuro da vida das sociedades e do planeta e, segundo, só visões estratégicas integradas, progressistas e emancipatórias permitirão que as cidades, enquanto espaços coletivos marcados pela diversidade, complexidade e conflitualidade, constituam contextos efetivos de construção de futuros baseados em valores humanos e democráticos.


Este texto é a síntese da reunião inicial do projeto sobre Política de Cidades, na qual participaram Ana Louro, André Carmo, Elisa Vilares, Filipa Serpa, Gonçalo Santinha, Helena Madureira, Isabel Cristina Martins, João Carlos Afonso, João Ferrão, Jorge Gonçalves, José Carlos Mota, José Reis, Nuno Travasso, Paulo Areosa Feio, Rita Castel’Branco, Tiago Mota Saraiva e Tiago Trigueiros.
A partir dele, associaram-se ao projeto cerca de cinco dezenas de profissionais e ativistas de formações diversas, provenientes de vários pontos do país que, por sua vez, prepararam os documentos que servirão de base para os debates que se desenvolverão no Fórum da Causa Pública sobre Política de Cidades, a 28 de junho na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Pode inscrever-se no fórum aqui.