O recente relatório sobre a crise da habitação da Nova SBE mostra uma visão demasiado parcial da atual crise da habitação e diversos equívocos interpretativos, pouco recomendáveis para tempos de campanha eleitoral.
Ideias-chave
- A crise da habitação não é um problema de “justiça intergeracional”, mas de modelo económico-social: ao limitar o funcionamento do Estado Social, prejudica famílias que não são proprietárias e cria clivagens entre as gerações mais novas
- O Alojamento Local está longe de ser o único fator do lado da procura a influenciar o aumento de preços. A compra e o arrendamento de imóveis por parte de indivíduos que não dependem de rendimentos em Portugal evidencia ter um grande impacto. Uma estimativa conservadora mostra que estas transações são, no mínimo, 10% do valor transacionado em Portugal, em que o valor da transação média é muito superior (1,70-2,0 vezes) ao valor das transações dos residentes fiscais.
- Depois de um período de alguma convergência entre as taxas de crescimento do preço do imobiliário em Portugal e restante União Europeia, esta diferença voltou a aumentar, com Portugal a registar maiores subidas. Isto levanta questões sobre os incentivos fiscais do programa Construir Portugal – nomeadamente se estarão a aumentar os preços.
- Existem sérias dúvidas sobre o excesso de regulação da construção ser um dos principais fatores do aumento dos preços. Dados do INE mostram que a proporção de empresas do setor a reportar “nenhum obstáculo” na sua atividade encontra-se em máximos históricos, em torno dos 60%.
- Reforçando o ponto acima, em termos de facilidade de licenciamentos, Portugal tem níveis semelhantes aos de outros países desenvolvidos. Crucialmente, estas dificuldades têm-se reduzido nos últimos anos, exatamente quando os preços da habitação passaram a crescer a um ritmo acelerado. Isto indica que Portugal não tem constrangimentos acima da média que justifiquem a escalada de preços.
- Comparada a outros países desenvolvidos, a oferta de habitação tem respondido positivamente aos aumentos de preços.
- Enquanto a regulação do mercado através de rendas “congeladas” está presente no parque habitacional português, a sua baixíssima (e decrescente) relevância mostra que está longe de ser um dos tópicos que alimenta a crise habitacional. O elevado nível de informalidade no mercado de arrendamentos (60%) afasta que a regulação das rendas esteja a ter efeitos de grande escala no mercado nacional.
- Não existem quaisquer indícios de que o número dos imóveis devolutos em Lisboa justifique ainda mais benefícios fiscais à reabilitação. Segundo os dados, grande parte dos alojamentos vagos está em boas condições.
Introdução
No dia 9 de abril, durante o período de pré-campanha eleitoral, foi publicado um estudo da Nova SBE Economics for Policy Knowledge Center em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado de “De Hoje para Amanhã: Avaliação de Política numa Perspetiva de Justiça Intergeracional”.
A cobertura mediática deste estudo focou-se nos efeitos do controlo de rendas, sintetizado pelo título do semanário Expresso: “Controlo de rendas está a gerar aumento de preços na habitação e ‘deve ser eliminado”. No caso do Diário de Notícias, o destaque foi para “Controlo de rendas prejudica gerações futuras”.
Sendo a Causa Pública uma associação cidadã empenhada no debate público, sentimos ser importante que a discussão sobre o problema habitacional conte com a participação de vários setores da sociedade, em especial num momento tão importante como o da presente campanha para as eleições legislativas. Com base no trabalho realizado na área da habitação, composto por dois relatórios publicados até à data (aqui e aqui) e mais um trabalho em fase de finalização, apresentamos quatro pontos nos quais damos conta das divergências face ao trabalho publicado.
- A habitação como problema geracional
Sem desvalorizar o recorte da geracionalidade da atual crise da habitação, consideramos esta abordagem insuficiente e redutora de uma crise de maiores proporções. Como destacado no nosso segundo relatório, a atual crise da habitação intensificou-se de tal modo que coloca riscos ao modelo de desenvolvimento económico e social do país.
Do ponto de vista económico, o aumento dos custos do imobiliário torna Portugal um país menos competitivo, menos capaz de atrair e reter mão de obra qualificada e favorece ainda as empresas já existentes e detentoras de imóveis, reduzindo o nível de competição na economia nacional. Este problema ainda se agudiza mais face à ascensão de setores inovadores, em especial na Transição Energética, na Transição Digital e, mais recentemente, nas iniciativas de reindustrialização e rearmamento da Europa.
Em relação ao funcionamento do Estado Social, há evidências de que o aumento de preços da habitação esteja a causar dificuldade no recrutamento de profissionais para áreas como a educação, a saúde e as forças de segurança. Apesar de não termos conhecimento da existência de estudos concretos sobre esta relação de causalidade em Portugal, existem indícios que apontam para esta tese. Por exemplo, a falta de professores em Portugal é altamente concentrada em regiões com elevadas subidas dos preços da habitação, entre as quais a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve se destacam. Dificilmente este tipo de dinâmica se encontra cingido aos professores. Assim sendo, ao desconsiderar estes efeitos de segunda ordem, vemos como mal direcionada a interpretação da crise da habitação como um problema intergeracional.
Por fim, essa narrativa oculta importantes contrastes dentro de cada geração. Sendo a maioria das famílias proprietárias de uma única casa, o aumento dos preços da habitação não se reflete em melhorias significativas das suas condições de vida. 1 Por outro lado, as famílias com mais do que uma habitação e que usam estas como uma fonte de rendimento têm visto a rentabilidade destas crescer.2 No outro extremo, aquelas famílias que não detêm qualquer imobiliário têm vindo a sofrer em toda a linha com os aumentos dos custos da habitação.
Focando-nos nas dinâmicas que afetam os mais jovens, estes têm sido afetados assimetricamente pela crise da habitação. Aqueles que herdam património (inclusive por heranças inter vivos) têm sido beneficiados pelas rendibilidades acrescidas do imobiliário. Assim, o crescimento acelerado dos preços da habitação tornou-se um mecanismo de aprofundamento das desigualdades no seio da mesma geração. Emerge uma forte clivagem entre insiders e outsiders dentro das gerações mais jovens – aqueles que já têm imobiliário via herança e outros cujo rendimento do trabalho é cada vez menos capaz de os fazer aceder às habitações. Há que também considerar a habitação como sendo um fator limitador da mobilidade dentro do país – os jovens que partem de zonas economicamente menos dinâmicas ficam numa posição de desvantagem face aos seus pares, quer na hora de estudar quer na hora de trabalhar.
- As causas da crise da habitação: pouco foco na procura, poucos indícios do lado da oferta
Enquanto no ponto acima, as nossas divergências interpretativas são compatíveis com um sentimento de urgência comum, as discordâncias quanto às causas potenciais do aumento de preços da habitação são mais profundas.
O estudo da Nova SBE divide os fatores causadores da crise da habitação entre procura e oferta. Do lado da procura, aponta-se para o Alojamento Local, que é classificado como uma das causas “mais discutidas”. Depois de um argumento teórico, os autores apresentam uma série de estudos que suportam a ideia de que esta modalidade de turismo teve de facto efeitos nos preços da habitação. Logo de seguida, afirmam que “não é o único fator que explica o aumento dos preços” e passam a enumerar problemas do lado da oferta, como os custos de produção, o “enquadramento regulatório” e os impostos.
Apesar de estarmos em concordância sobre o impacto do Alojamento Local (significativo, mas não sendo causa única) na crise de habitação, somos da opinião de que o estudo ignora por completo outros fatores do lado da procura, inclusive vários que fazem parte do debate público (e cobertura internacional).3 A crescente procura de casas para residir e investir por parte de pessoas cujos rendimentos não dependem diretamente da economia nacional (em geral estrangeiros, mas também nacionais) – usufruindo ou não de programas existentes – Vistos Gold, Vistos Nómadas Digitais, Residentes Não Habituais – certamente terá impactos no mercado da habitação.
Os dados publicados pelo INE tornam evidente que este canal tem um peso significativo no mercado de compra de habitação. Desde que há dados disponíveis (2019), as transações de alojamentos familiares feitos por não residentes fiscais situam-se em torno dos 10-11% do total do valor transacionado no mercado.4 O valor médio das compras feitas por pessoas com domicílio fiscal fora de Portugal chegou a ser o dobro daquele gasto por residentes fiscais (1,70-2,01 vezes mais do que o valor gasto por residentes fiscais). Ou seja, se usarmos um leilão como analogia, que não é muito distante do processo de compra de uma casa, o mercado nacional tem um número significativo de novos “licitadores” (10-11%) que costumam “apresentar propostas” com valores muito acima da média dos restantes “licitadores”. Se a isto acrescentarmos que, apesar da difícil quantificação, muitas vezes o destino do valor da venda de uma casa é a compra de outra casa, assim é gerado um efeito multiplicador por todo o mercado devido a estas procuras externas.
Gráfico 1: Volume de transações de alojamentos familiares, por domicílio do comprador (milhões de euros)
Fonte: INE, Transações (€) de alojamentos familiares por Localização geográfica (NUTS – 2024), Categoria do alojamento familiar, Domicílio fiscal do comprador e Setor institucional do comprador; Anual.
Gráfico 2: Valor médio de transação de alojamentos familiares, por domicílio do comprador (milhares de euros)
Fonte: INE, Transações (€) de alojamentos familiares por Localização geográfica (NUTS – 2024), Categoria do alojamento familiar, Domicílio fiscal do comprador e Setor institucional do comprador; Anual; Transações (N.º) de alojamentos familiares por Localização geográfica (NUTS – 2024), Categoria do alojamento familiar, Domicílio fiscal do comprador e Setor institucional do comprador; Anual. Cálculos dos autores.
Há que realçar duas particularidades do fenómeno descrito acima. Em primeiro lugar, os dados apresentados acima devem ser vistos como uma subestimação do papel deste tipo de procura, visto que não inclui a procura estrangeira com domicílio fiscal em Portugal (p. ex: residentes não habituais, vistos nómadas digitais e outros casos). Em segundo lugar, os dados regionais mostram um crescimento das transações por parte de não residentes fiscais nos territórios das regiões onde a crise habitacional tem sido mais aguda (o Algarve, a Área Metropolitana de Lisboa e o Oeste).5
Em todo o relatório, o mais próximo de uma menção a esta dinâmica de mercado encontra-se na seguinte frase: “a procura de habitação continua elevada tanto por parte de estrangeiros como de nacionais, em parte devido ao crescimento da população na área metropolitana de Lisboa (1,7% desde 2011)”, uma expressão ambígua que levanta mais questões do que esclarece.
A omissão deste tipo de fatores não pode ser justificada pela falta de evidências científicas, em especial no caso dos Vistos Gold. O estudo de João Pereira dos Santos e Kristina Strohmaier mostra como os Vistos Gold tiveram um contributo nos preços de casas de valores mais elevados (aumento de 10%), não só pelas suas transações, mas por arrastar outras transações para um patamar superior aos 500,000 euros.6
Também é com alguma estranheza que observamos que as medidas fiscais do atual governo de estímulo à procura por parte de jovens (isenção de IMT, de imposto e garantia pública para jovens) sejam ignoradas por completo. Estas medidas, ao promoverem a procura (sem terem efeitos na oferta ou nas dinâmicas internas de mercado) certamente terão vindo a ter efeitos no preço das casas, uma possibilidade assumida pela própria ministra da Juventude e Modernização e pela agência financeira de rating DBRS.
Gráfico 3: Diferença entre a subida de preços da habitação (anualizado) em Portugal e na União Europeia (pontos percentuais). Barras: Anúncio do Mais Habitação, entrada em vigor do Mais Habitação e anúncio do Construir Portugal.
Fonte: Eurostat, House price index (2015 = 100) – quarterly data.
No que toca a grandes iniciativas governamentais, todo o foco do relatório está no Programa Mais Habitação (colocado em vigor em outubro de 2023) do executivo anterior. Por outro lado, está ausente qualquer menção ao programa “Construir Portugal” do executivo agora cessante. Embora possam existir critérios que justifiquem esta opção, não é apresentada ao leitor qualquer argumento que a fundamente. A clarificação que fica por fazer e a data em que a publicação surge induz o leitor a concluir que o relatório se destina mais a intervir na presente campanha eleitoral do que a esclarecer o país sobre as causas e as soluções para a crise habitacional.
- Os poucos indícios sobre os problemas de restrição na oferta
O relatório da Nova SBE cita em diversas partes eventuais constrangimentos à oferta (falta de construção) para explicar o aumento de preços. De forma muito vaga são mencionados o “enquadramento regulatório” e o “sistema tributário associado”.
Do lado das boas práticas, é-nos apresentada a reforma urbana israelita de 2016, com o objetivo de “flexibilizar a regulamentação do ordenamento do território para aumentar a oferta da habitação, simplificando os procedimentos de ordenamento dos territórios e eliminando os obstáculos à construção”, implementada num contexto de forte aumento de preços e comparada ao simplex dos licenciamentos urbanísticos. Os autores afirmam que o “Decreto-Lei n.º 10/2024 aprova o simplex dos licenciamentos urbanísticos, com o objetivo de simplificar o licenciamento urbanístico (…) pode ter o potencial de aumentar a oferta de habitação, diminuir o tempo médio necessário para o planeamento e a construção, e a uma redução dos preços”.
De acordo com os dados compilados pelo Banco Mundial, referentes a 2019, as restrições burocráticas não são particularmente altas em Portugal, e têm mesmo vindo a diminuir, estando abaixo de vários dos nossos parceiros europeus. Portugal tem um “tempo médio para obter licenciamentos de construção” abaixo de países como a França, a Itália, a Roménia e a Áustria; e muito abaixo de Israel (160 dias vs. 200 dias), país destacado pela positiva em artigo citado pelos autores. A título de exemplo, nesta métrica, Portugal tem níveis comparáveis aos de Espanha, que apesar de uma conjuntura macroeconómica semelhante ao longo da última década, tem registado aumentos de preços do imobiliário muito mais contidos, como analisado por um trabalho recente do Banco de Portugal.7
Gráfico 4: Tempo necessário a lidar com licenças de construção (dias), 2019
Fonte: Banco Mundial, Doing Business (Dealing with construction permits: Time days). Países da OCDE e parceiros selecionados.
De igual importância, devemos relembrar que foi precisamente antes do início da crise habitacional que se deu um importante relaxamento dos constrangimentos burocráticos. Entre 2010 e 2013, o tempo com licenciamentos caiu significativamente em Portugal, uma das maiores reduções nos países desenvolvidos (menos 67 dias entre 2010 e 2019), enquanto Israel reduziu apenas 7 dias no mesmo período.8 Um processo que tem tido continuação, como mostram as recentes medidas para facilitar e agilizar o acesso à habitação (p. ex: Simplex Urbanístico). Este caso não serve para desvalorizar as reformas urbanas de Israel, ou reduzi-las a uma única métrica, mas para realçar que Portugal tem feito avanços significativos nesta frente, sem que com isso tenham conseguido abrandar o aumento de preços.9
Gráfico 5: Tempo necessário a lidar com licenças de construção (dias)
Fonte: Banco Mundial, Doing Business (Dealing with construction permits: Time days).
Como informação adicional, o índice do Banco Mundial que mede o grau de facilidade de obtenção de licenciamentos para construção, ao agregar várias métricas, mostra que Portugal tem uma pontuação em linha com os países europeus, da OCDE e Israel em particular.10
Depois de ser reconhecido que é difícil quantificar as causas da crise para além do Alojamento Local devido “à falta de dados” e que “sem compreender com exatidão quais as causas, é difícil perceber quais serão as políticas mais eficazes”, os autores do relatório apresentam os resultados de um inquérito. Neste, quase metade (45%) dos inquiridos “apontou o número elevado de impostos, licenças ou impedimentos legais como sendo o principal entrave à construção”. Já se compararmos estes dados recolhidos pelos autores com aqueles do INE, do “Inquérito qualitativo de conjuntura à construção e obras públicas” temos que o setor da construção está num dos períodos com menos obstáculos desde que há dados (1997). Em torno de 62% das empresas inquiridas reportaram não ter qualquer obstáculo à atividade – próximo dos máximos históricos de janeiro de 2024 e em linha com valores do período pré-crise financeira do início deste século.
Gráfico 6: Empresas que reportam “nenhum obstáculo” à atividade de construção, média móvel de 3 meses.
Fonte: INE, Inquérito qualitativo de conjuntura à construção e obras pública.
Nos dados do INE, dentro das empresas que reportam algum tipo de obstáculo, menos de 20% citam “dificuldade na obtenção de licenças”, sendo a quinta opção mais enunciada dentro de um leque de nove opções. A proporção de empresas que reportam dificuldades com licenças é bastante estável desde 1997, oscilando entre os 10% e os 20% das empresas que reportam algum tipo de obstáculo. Sendo um questionário de resposta única, estes dados recolhidos há quase 30 anos colidem com aqueles do estudo. Fica por fazer qualquer reflexão sobre esta divergência por parte dos autores.
Resumindo a análise acima, é altamente duvidoso que as diferenças na formação de preços em Portugal advenham de constrangimentos de ordem burocrática. Estes dados não devem ser interpretados como uma relação causal (de uma hipótese contrafactual em que licenciamento mais rápido leve a aumentos de preços). Deve sim evidenciar que esta não aparenta ser uma área em que Portugal tem constrangimentos acima da média e que assim justifique a escalada dos preços da habitação.
Por último, de acordo com um estudo do Banco Mundial, publicado em 2018, a construção de novas habitações em Portugal responde positivamente ao aumento de preços de mercado. Dos 19 países analisados, Portugal apresentava a sétima maior resposta da construção face aos preços (elasticidade).11
Este facto reforça a ideia anteriormente explorada: o mercado de habitação nacional não sofre profundos constrangimentos que o inibam de responder aos sinais dos preços.
Por isso, devemos interpretar o desequilíbrio entre procura e oferta, não como a incapacidade de expandir a oferta, mas na forma como estes dois fatores interagem. Em particular, um desequilíbrio estrutural entre as velocidades da procura e da oferta. As conclusões do estudo apontam para um espécie de reequilíbrio entre os dois lados do mercado, ignorando fatores como a procura atual refletir uma absorção de capitais externos globais (não somente pelo crescimento demográfico interno), que pela sua natureza são fluxos quase instantâneos. Face a estes, a construção nunca conseguirá acompanhar o ritmo de expansão, devido a requerer a mobilização de recursos (trabalho e capital), cujo ritmo é pautado em meses ou até anos.
- O controlo de rendas e a sua influência no mercado habitacional
O grande foco do trabalho dos economistas da Nova SBE é em torno do controle de rendas, apresentando cinco estudos de casos empíricos. Em geral, segue a conclusão de que esta medida é prejudicial ao mercado de habitação no longo prazo. Apesar de ser um tema apresentado nesta campanha eleitoral por algumas forças políticas, o combate à medida é excessivo face à sua aplicação atual na realidade portuguesa. De novo, uma contextualização de qual será a relevância deste vetor em Portugal fica por fazer. Vários aspetos fazem-nos discordar do peso atribuído a este fator para explicar a crise da habitação em Portugal.
Em primeiro lugar, sendo o mercado de habitação em Portugal historicamente dominado pela aquisição da casa própria (cerca de 25% arrendam), o papel do controlo de rendas terá sempre um efeito muito limitado.
Em segundo, as rendas congeladas no sentido mais estrito da palavra (rendas anteriores a 1990) presentam, no máximo, cerca de 124 mil,. Um número relativamente baixo no universo do mercado de habitação (2% dos alojamento familiares clássicos, Censos 2021 e 14% dos alojamentos em arrendamento). Dada a expiração destes contratos com o fim de vida do inquilino, é expectável que estes tenham vindo a sofrer um declínio ao longo da última década e que assim continuem. Na prática, a recomendação dos autores – de que o controlo de rendas deve “ser progressivamente reduzido ou até mesmo eliminado” – vai sendo paulatinamente cumprida por um fenómeno secular.
Relativamente aos tetos para o aumento de rendas em contratos em vigor, também olhamos com ceticismo para os potenciais efeitos distorcivos desta medida. Por um lado, quase metade do mercado de arrendamento (45%) são contratos com uma duração de até quatros anos. Logo, o coeficiente de atualização de rendas dificilmente está a criar distorções significativas, dado que o valor original dos contratos foi celebrado a preços recentes.
Acrescenta-se ainda que o mercado de arrendamento em Portugal é dominado por elevadíssimos níveis de informalidade. De acordo com a auditoria da Inspeção Geral das Finanças, 60% dos inquilinos encontra-se sem contrato declarado às Finanças, tornando-os desprotegidos de qualquer regulação. Logo, o argumento de que algum tipo de controlo regulatório no mercado de rendas (fixação de preços ou limitação de aumentos) tenha um impacto significativo no equilíbrio do mercado de habitação em Portugal parece pouco convincente.
Sem entrar na discussão dos méritos e deméritos de índices de aumento de rendas, ou mesmo controlos de rendas, o foco excessivo dos autores neste tópico não é um contributo para a clarificação do debate nacional em tempos de campanha eleitoral. Este ênfase excessivo é especialmente contraprodutivo quando ficam por analisar neste relatório uma série de novas tendências do mercado imobiliário nacional (mencionadas aqui anteriormente). Ao contrário do controlo de rendas, o surgimento destas novas dinâmicas coincide com a ultrapassagem do crescimento dos salários pelos aumentos da habitação.
Nota conclusiva: O paradoxo das políticas baseadas em evidências científicas
Uma das principais recomendações do relatório é a escolha de “políticas com base em dados e evidência científica”, que é exatamente o método utilizado para descartar qualquer forma de controlo de rendas.
Com algum grau de ironia, as conclusões políticas das evidências científicas face ao Alojamento Local ficam por fazer. Sendo uma atividade que foi recentemente flexibilizada, o estudo da Nova SBE nem sequer o nota.
Ainda assim, as seguintes recomendações políticas apresentadas na mesma secção (quota de habitação social de 30% e “maiores incentivos fiscais” para a recuperação de devolutos) carecem de quaisquer evidências científicas. No caso da reabilitação de devolutos, o IVA foi reduzido para 6% em 2009; no caso de Lisboa (exemplo citado pelos autores), a Câmara Municipal de Lisboa introduziu em 2015 um alargado conjunto de isenções tributárias para a Área de Reabilitação Urbana (ARU), que inclui praticamente toda a cidade, com exceção das áreas recentemente urbanizadas. Ao invés de uma avaliação detalhada dessas políticas, os autores simplesmente sugerem mais benefícios fiscais.
À falta de mais detalhes, os autores parecem confundir alojamentos vagos e devolutos: enquanto é correto afirmar que Lisboa tem cerca de 26 mil fogos vagos (excluindo os vagos para venda ou arrendamento), a maioria destes estão em relativas boas condições. Cerca de 56% (14.522 fogos) não tem qualquer necessidade de reparação, e apenas 6% (1.449 fogos) apresentam “necessidades profundas” de reparação. No caso de Lisboa, baixar (ainda mais) a fiscalidade da reabilitação mais depressa levará a uma melhoria de imóveis já em condições de habitabilidade com vista a sua valorização do que à recuperação de devolutos em escala significativa. Não sendo algo negativo per se, não é um objetivo que mereça uma subsidiação do Estado. Por esses motivos, somos conduzidos à opinião de que seria mais interessante desincentivar o fenómeno sem o restringir, penalizando fiscalmente a existência de fogos vagos – aumentando-lhes a carga fiscal -, de forma a colocá-los no mercado.
Gráfico 7: Os imóveis por necessidade de reparação em Lisboa
Fonte: Censos 2021.
Naturalmente, não tendo uma posição contrária ao uso de evidências científicas na implementação de políticas públicas, acrescentamos duas reflexões sobre esta questão. As evidências científicas geralmente surgem do estudo da tomada de decisões de política pública. Ancorar qualquer política pública na existência de evidências cria um paradoxo, que levaria a uma paralisia da política. Dado o nível de intensidade da crise habitacional em Portugal e o reduzido número de países desenvolvidos que tem conseguido conter os preços, é desejável evitar esse tipo de inércia para a procura de soluções, não descurando a experimentação. Dessa forma, consideramos que monitorizar métricas e efeitos é mais relevante do que a existência de “evidências científicas” a priori, sempre reflexo de contextos, regiões e contextos históricos específicos.
Notas de rodapé
- Apesar de não termos encontrado quaisquer dados sobre a distribuição de propriedade em Portugal por familias, é possível concluir que a maioria das pessoas não é detentora de mais que uma propriedade através do número de casas para fins sazonais (18% dos Alojamentos existentes, Censos 2021) e do número de famílias arrendatárias em Portugal (26% das famílias). ↩︎
- Não foram encontrados dados sobre o número de famílias com duas ou mais propriedades em Portugal. ↩︎
- Ver por exemplo, “Lisbon’s Hot Housing Market Defies Push to Deter Foreign Buyers”, Bloomberg: 15 dezembro de 2023; ou “Where are Europe’s most expensive cities for renters?”, The Economist, 20 de fevereiro de 2024. ↩︎
- Em número de transações tem oscilado entre os 5,3% e os 7,6% nos ultimos anos. Um valor mais baixo que o volume das transações, visto que cada compra por não residentes fiscais nacionais é, em média, substancialmente mais alta.↩︎
- O peso de não residentes fiscais no total de transações aumentou na Região Autónoma da Madeira, na Região Autónoma dos Açores, no Centro, no Norte e na península de Setúbal. Fonte: INE, INE, Transações (€) de alojamentos familiares por Localização geográfica (NUTS – 2024), Categoria do alojamento familiar, Domicílio fiscal do comprador e Setor institucional do comprador.↩︎
- All that Glitters? Golden Visas and Real Estate, João Pereira dos Santos e Kristina Strohmaier 2024 ↩︎
- Lourenço, R., Moura, A. e Rodrigues, P. (2024) Mercado de habitação em Portugal e Espanha: Fundamentos, sobrevalorização e choques, Banco de Portugal: Revista de Estudos Económicos, Vol. X, N.º 4 ↩︎
- De 227 dias em 2010 para 160 dias em 2013. Dos 35 países desenvolvidos analisados, Portugal teve a sexta maior redução de dias de licenciamento, apenas atrás da Croácia, Chipre, Polónia, Noruega e Lituânia. Do universo analisado, apenas 16 países tiveram reduções e oitos países aumentaram o número de dias. ↩︎
- De acordo com a OCDE, os preços reais da habitação em Israel abrandaram a partir de 2016 (7,7% ao ano no período 2008-2016 vs. 3,1% ao ano no período 2016-2024), o que não é o caso de Portugal. O que sugere que outros fatores estão a influenciar estas dinâmicas em Portugal. ↩︎
- Dos 39 países analisados (OCDE e parceiros), Portugal apresenta-se no 22º lugar com uma pontuação de 73,2, em linha com a média de todos os países (73,3) e dos países excluindo os parceiros da América Latina (73,8). Em termos individuais, a pontuação de Portugal encontra-se ligeiramente abaixo de França (74,2), Áustria (75,1), Bélgica (75,5) e Israel (76,5) e ligeiramente acima de países como Canadá (73,0) e Suíça (71,7). Itália (68,3), Espanha (70,8), Países Baixos (69,4), Hungria (67) e Eslovênia (65,3) apresentam um índice muito abaixo de Portugal. ↩︎
- Gabriela Inchauste, Jonathan Karver, Yeon Soo Kim, Mohamed Abdel Jelil. Living and Leaving: Housing, Mobility and Welfare in the European Union, Banco Mundial. ↩︎